O animal que simboliza a Rússia é o urso e, da Ucrânia, é a cegonha. Uma relação ilustrada desse trágico conflito que acontece na Europa. Eu penso em uma cegonha como o símbolo de novidade, de uma vida nova, um animal que traz, portanto, boas novas. E vejo o urso como um animal enorme, estabanado, bravo e agressivo.
Mas prefiro pensar no urso mais fofão dos desenhos animados, como o urso amigo da Masha, menina russa que vive fazendo estrepolias e atazanando a vida do pobre grandalhão! Quem dera, não é, que essa guerra se limitasse apenas às minhas inocentes divagações…

Estátua da menina Masha e o Urso, na região de Volgogrado/Rússia
Fonte: Wikipedia
Mas sabemos que é real o caos que o povo ucraniano vive e a dureza de um país assolado por uma catástrofe.
Desde janeiro de 2022 acompanhamos diariamente notícias do conflito entre esses dois países, tão distantes e diversos culturalmente do Brasil. E pude assistir e ler matérias é vídeos que nos mostram uma situação cotidiana muito familiar aos brasileiros: o abandono de animais.
Eu juro, leitor, não quero entrar nessa polêmica; isso dispenderia muita discussão, reflexão, até uma certa tristeza, para que a gente pudesse compreender esse fato contemporâneo. O que quero repensar nesse texto é a relação do homem e do cão em face de uma tragédia sem proporções como uma guerra.
Entendo que – apesar de reportagens nos mostrarem fatos que acontecem por lá, como o abandono de animais domésticos, o sofrimento deles, a fuga de pessoas que carregam seus pets durante o exaustivo e sofrido processo de fuga de um país destroçado – a questão da sobrevivência, em uma situação limite, nos leva a tomar decisões egoísticas.
Imagine uma situação na qual você esteja correndo risco de morte, o que você faz? Tenta se salvar? Tenta revidar a uma possível agressão? Foge? Paralisa e espera pelo pior? É muito difícil julgar os cidadãos ucranianos por decisões tomadas com a chegada da guerra. Decisões que não são, muitas vezes, humanitárias, compassivas, amorosas, mas que simplesmente se resumem à necessidade instintiva de qualquer ser vivo: a luta pela sobrevivência.
Para mim, uma das boas práticas que foram vistas desde o início desta guerra é a dedicação de milhares de pessoas em ajudar aos refugiados e aos seus animais.
Ongs como a ADA Foundation (que é uma associação norte-americana de dentistas), baseada em Przemysl, na Polônia, atuou para ajudar centenas de animais que cruzaram a fronteira. E não apenas cães: gatos, cabras e outros animais domésticos passaram pelos cuidados desses profissionais. E até mesmo animais silvestres foram resgatados e levados para outros países da região.
Um conflito dessas proporções não tem como prioridade, de pronto, salvar os animais. As pessoas, os cidadãos são a prioridade óbvia. Todavia, o que nos aquece o coração é ver tantos profissionais da área da saúde que se dispuseram a ir até a fronteira ou mesmo cruza-la para salvar tantas outras vidas negligenciadas pelo conflito armado.
Cães, por exemplo, mesmo nessa caótica situação, foram reconhecidos como heróis da guerra. Um cachorrinho chamado Patron (que significa cartucho no idioma local), encontrou mais de 90 artefatos bélicos. Ele é parte do esquadrão antibomba do exército ucraniano. Tem até vídeo que nos mostra a atuação desse perspicaz amigo, todo elegante, usando colete durante o trabalho, com o nome gravado e tudo!
Um pastor malinois, chamado pelo exército ucraniano de Max, foi supostamente abandonado pelo exército russo em maio deste ano. E acabou se tornando um companheiro dos soldados ucranianos, que começaram então a lhe ensinar comandos e o abraçaram como cão farejador, colaborando na busca e identificação de artefatos bélicos.

O Pastor malinois, Max
Fonte: Diário de Pernambuco
Em março deste ano a FAB (Força Aérea Brasileira), enviou uma aeronave até a Polônia para repatriar brasileiros que viviam na Ucrânia e que haviam fugido para esse país vizinho. Junto com eles vieram oito cachorros e dois gatos.
Buscando na internet, encontramos muitas histórias de soldados, exércitos e seus cães. Um fato interessante é que a Rússia já conta com a participação deles em guerras desde o conflito da Crimeia (região que é parte do território ucraniano, mas tomada pela Rússia em 2014), conforme apontam documentos de 1840. Durante uma campanha na Ásia Central, em 1890, o exército russo usou cachorros para transporte de munição, levar correspondências e vasculharem territórios.
O mesmo aconteceu na Guerra Russo-japonesa e durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1908, as forças militares russas criaram, inclusive, uma organização para promoção do uso de cães em campos de batalha e, no ano seguinte, foi aberta a primeira escola de formação de cães policiais em São Petersburgo. Na foto abaixo, vemos o Tref, um doberman promissor e um dos melhores alunos dessa escola russa, que ajudou a localizar dezenas de ladrões e terroristas.

Tref
Fonte: site Russiatoday
Outro lendário cão foi o Djulbars: um pastor alemão que durante a Segunda Guerra Mundial ajudou na localização de 7.000 minas terrestres e granadas. No desfile da Vitória, em 1945, um soldado desfilou com ele no colo.

Djulbars todo elegante no desfile do final da 2ª GM
Fonte: Pinterest
Até hoje, a segurança das linhas de metrô na Rússia se utiliza de cães farejadores para detecção de narcóticos e explosivos. Em março de 1944 um cabo do exército americano encontrou uma cachorrinha de nome Smoky da raça Yorkshire Terrier, na Nova Guiné. O cabo iria vende-la e foi então que apareceu o soldado Bill Wynne que decidiu compra-la para cuidar da nova amiga. Vejam, abaixo, o fantástico feito dessa cachorrinha:
“Durante os conflitos, vários aviões japoneses atacavam o campo de aviação aliado, no Golfo de Lingayen, em Luzon. O ataque estava afetando as comunicações e os comandantes americanos precisavam urgentemente passar linhas telefônicas por um tubo que se estendia por cerca de 21 metros de profundidade, ligando a base até três esquadrões separados. No entanto, não haviam equipamentos adequados.
O tubo tinha apenas 20 centímetros de diâmetro, e a única forma de colocar os cabos no lugar seria fazê-lo manualmente. Com isso, centenas de homens se colocariam em risco cavando trincheiras para colocar os fios no subsolo, o que os deixaria expostos aos ataques inimigos. Foi então que todas as esperanças daqueles homens foram depositadas em uma pequena cachorrinha. Bill Wynne se posicionou na outra extremidade, para encorajar que Smoky atravessasse por todo o caminho, com um fio que levava o cabo de comunicação preso à coleira.
Smoky conseguiu completar sua missão, sendo responsável por salvar cerca de 250 homens e 40 aviões naquele dia. Contudo, as façanhas da pequena Yorkshire não pararam por aí. Algum tempo depois, Bill Wynne pegou dengue e foi enviado para a 233ª Estação Hospitalar, onde ficou internado. Alguns dias depois, os amigos de exército levaram Smoky para vê-lo, as enfermeiras se encantaram com a cachorrinha e pediram para leva-la para visitar outros pacientes feridos na invasão da Ilha Biak.
Smoky passou cinco dias no hospital, onde dormia com seu tutor, Wynne, durante à noite e visitava outros pacientes durante o dia, se tornando assim um dos primeiros cães de terapia da história. Smoky faleceu alguns anos depois, aos 14 anos, e, em 2005, uma escultura em sua homenagem foi feita, sendo instalada no mesmo local em que foi enterrada. Bill Wynny veio a falecer em abril de 2021, aos 99 anos. A história da dupla é contada no ‘Yorkie Doodle Dandy: A Memoir’, livro de autoria do próprio Wynny”.

Olha o tamanho dessa pequena grande heroína, a Smoky!
Fonte: Doghero
Há narrativas mais antigas da presença de cães em conflitos. Na Guerra do Peloponeso (entre cidades-estado gregas, dentre Atenas e Esparta), no século V a.C., aconteceu a celebração a Dionísio, deus do vinho, e nesse festejo estavam os soldados de Corinto. O exército de Atenas, ao ver a guarda dos corintos desfrutando de um sono profundo após a bebedeira, resolveu atacar e a surpresa estava aí: os soldados dormiam, mas 50 cães furiosos e bem acordados recepcionaram os atenienses, causando baixas entre os inimigos. Porém, durante a batalha, esses cães foram dizimados e apenas um sobreviveu, e a ele foi erguida uma estátua, adornada por uma coleira de prata, que dizia: “Sóter, defensor e salvador de Corinto”.
São um sem-número de memórias de animais presentes ao longo de toda história, cães, cavalos, pombos-correio, elefantes e até mamíferos aquáticos como golfinhos e leões-marinhos, para detecção de minas e mergulhadores. Os sapos foram aliados em guerras, extraindo o veneno da pele para usar em zarabatanas e as cobras, pelo veneno que trazem em suas peçonhas, eram armadilhas em buracos feitos pelos vietcongues durante a Guerra do Vietnã.
Por fim, desse conflito russo-ucraniano que estamos acompanhando desde fevereiro, eu só consigo pensar em esperança. O que mais pode motivar todos os ucranianos refugiados senão esse sentimento tão abstrato, mas necessário? Esperança de que a guerra cesse, de que retornem para casa, de que a paz volte para seu país…e eu fico então com a imagem da ursa de nome Masha para encerrar esse texto.
Uma notícia do mês de abril fala do resgate de uma fêmea de urso chamada Masha. E ela tem muito em comum com o urso amigo da pequena menina dos desenhos animados. Era um animal de circo, que foi resgatado e levado para a Romênia.
Nessa saga, a fêmea Masha ganhou um companheiro, seu criador Lionel, que se desdobrou para arrumar um jeito de cruzar a fronteira junto com sua amiga inseparável.

Ursa Masha
Fonte: Natgeo
Lionel contou à jornalista Nataly Daly, da National Geographic, que esperava passar por maus bocados, mas foi exatamente o contrário: as pessoas viam e sorriam ao ver um animal que trazia estampado em si o sentimento de esperança e da possibilidade de recomeço. Lionel é membro de uma organização que resgata animais na Ucrânia e é uma das pessoas que se arrisca para fazer essa viagem com vários animais, para lhes garantir segurança. Lionel salvou Masha pela segunda vez: em 2018, ele já tinha resgatado a grandalhona de um circo ambulante. E, novamente, em 2022, assumiu a missão e a luta pela sobrevivência desse animal, símbolo da Rússia.
Chegando à Romênia, depois de uma verdadeira epopeia que durou dias; Masha chegou a um santuário de ursos, fundado e dirigido por Cristina Lapis. Ela fala assim na reportagem: “Imagine passar 22 anos sem ver outro urso. Quando ela viu os outros ursos e começou a cheirá-los, ficamos todos de lágrimas nos olhos.”
O amigo da ursa Masha, Lionel, representa para mim a cegonha, símbolo da Ucrânia: animal símbolo de novidade, renovação, de esperança. E essa é a imagem que quero manter dessa guerra: é preciso, até mesmo inevitável, não desejar que esse conflito acabe. Como milhares de conflitos que a humanidade passou e passa, sempre há que se desejar que a dor acabe e a vida floresça novamente. Lionel traz Masha como uma cegonha: voou com ela até a Romênia, ofertando-lhe uma terceira chance. Ele fala para a jornalista: “Enquanto conduzia em direção à Ucrânia, eu ia feliz. Eu tinha medo, mas estava feliz. Isto tem de ser feito. É algo que precisa simplesmente de ser feito.”
Que lindo, não? A felicidade existe, ainda que muito frágil, no coração das pessoas envolvidas na guerra. Que a cegonha e o urso andem juntos e consigam, de alguma maneira, reavivar a esperança de reconstruírem uma relação de amizade, respeito e parceria, assim como nós, animais humanos e os cães, sempre buscamos ter. Aqui no nosso blog tem um vídeo lindo que fala de um projeto do INATAA (Instituto Nacional de Ações e Terapia Assistida por Animais) e de como cães auxiliam refugiados no Brasil, não tem como não se emocionar com essas amizades entre nós e os animais. Vai lá assistir!
Até mais!
Bianca