Há várias frases que utilizam o adjetivo cão com sentido depreciativo: “tal pessoa tem um gênio do cão”, “isso é coisa do cão”, “cão que late não morde”, “fulano é um cachorro!”, “cão chupando manga”, e por aí vai. Dessas, a que eu mais me identifico é o cão chupando manga: tem até hashtag nas redes sociais de vários cachorros chupando manga! Fora que eu tive um cachorro, fofíssimo, o Gigante, um Lhasa Apso que fotografei literalmente com a manga na boca. Apesar de essa frase popular tratar de algo feio que nem o diabo, o Giga era tão lindo…, mas vivia descabelado!

Meu Gigante, chupando manga!
O primeiro cão do mal que marcou a história ocidental foi Cérbero, pertencente a Hades, o deus grego do submundo. Um hellhound (cão do inferno) de três cabeças, que guardava a entrada do inferno. No norte da Europa e na Grã-Bretanha já era comum no ano de 1190 as histórias que contavam sobre cães sobrenaturais e fantasmagóricos, assim como no México tem-se a figura do cadejo – um cachorro preto que assombra transeuntes em estradas rurais.
Nos Estados Unidos, a mitologia inuíte traz a figura de um lobo enorme de nome Amarok, que assusta e devora caçadores noturnos. E como não lembrar do famoso lobisomem aqui no Brasil, o homem que vira lobo em noites de lua cheia. Histórias assombradas sobre os peludos malévolos tem aos montes!

Cérbero, o cão de 3 cabeças da mitologia grega. Créditos: bp.blogspot.com
Em um país como o Brasil, temos práticas religiosas oriundas de outros continentes, que aqui se encontraram com as tradições religiosas indígenas. Um pintor holandês chamado Albert Eckhout (1610-1666) pintou um quadro denominado A mulher Tapuya, em 1641, no qual ele retratou uma mulher com um cão aos seus pés.

Nationalmuseet, Copenhagen, Dinamarca. Créditos: nuevomundo
Há várias interpretações a respeito da imagem; não se sabe ao certo porque o cão foi representado ao lado da indígena, visto que, no Brasil, os cães somente chegaram com a colonização europeia e não eram do convívio de grupos nativos. Acabaram, no entanto, tomando contato com as populações indígenas brasileiras, e vivendo com eles também.
Dentre as interpretações do quadro de Eckhout, está o uso da figura do cão para associá-lo ao canibalismo e selvageria dos grupos indígenas, ou então para que sua figura remetesse a essas práticas que os europeus abominavam. “O cachorro selvagem, lambendo a água aos seus [da mulher Tapuya] pés sublinha sua selvageria e, ao coabitar a mesma paisagem acidentada com um cachorro selvagem, as tendências animalescas da mulher são também realçadas”, explica o pesquisador Felipe Vander Velden* já aqui o cachorro aparece como um ser maligno ou que lembra coisas más e perigosas.
Religiões de matrizes africanas, infelizmente, padecem de desprezo e perseguição por parte de outras crenças, que demonizam seus orixás, dentre eles Exu, que é muitas vezes associado à figura do cão. Porém, como André L.N. Souza** explica abaixo, a caracterização de Exu é diferente da figura que se criou em torno dele no Brasil:
Entidade cultuada entre os Iorubás, Exu é conhecido principalmente na região do ex-Daomé, atual território do Benin. Ele é o Orixá que representa o movimento, é o senhor dos caminhos e o deus da fertilidade. Sua representação escultural está ligada à sexualidade, principalmente aos órgãos genitais masculinos. Exu carrega consigo o Ogó, um porrete com formato fálico, ornamentado com cabaças e búzios que simulam respectivamente os testículos e o sêmen (Souza, 2016).
Eu busquei bastante sobre a interpretação pejorativa dos cachorros em várias crenças religiosas. Na verdade, nenhuma delas prega maus-tratos ou mesmo a completa abominação desses amigos. Em geral, as religiões tratam não apenas os cachorros, como todos os animais, com respeito e benevolência. Porém, algumas religiões sugerem cuidados ou não aconselham os fiéis a terem cães como pets, dentro dos lares.
Dentre as tradições ocidentais, o Islamismo, por exemplo, desencoraja a adoção de cães, pois algumas interpretações do Alcorão os entendem como sendo impuros, apesar de as menções serem inofensivas quando falam desse animal doméstico. Todavia, não encorajam as famílias em os adotarem, mas caso haja um cachorro na casa, é necessário cumprir regras de higiene para oração.
O Judaísmo também tem entendimentos variados sobre o universo animal. São sim aceitos os pets, mas há restrições no sentido de entender que, seja qual for o animal, ele deve despender do ser humano os mesmos cuidados que este tem com os da sua espécie, ou seja, pregam a necessidade de cada tutor assumir a responsabilidade quanto ao animal, garantindo seu sustento, pois são parte da família.
Entre as práticas religiosas cristãs, a Igreja Adventista do Sétimo Dia entende que é importante lutar pela preservação de todas as espécies animais. Para os católicos, os animais são criaturas de Deus, merecem respeito e amor. Para o Espiritismo, animais são seres que estão em um processo de evolução espiritual, merecedores de carinho e proteção. Para a Umbanda, os animais têm espíritos que evoluem, e não encorajam nenhum tipo de sacrifício animal, pois são seres dotados de almas.
O Budismo prega um respeito imenso a todas as coisas, plantas e animais. A monja Cohen, zen budista brasileira, conta um caso por ela vivenciado:
Há três semanas meu cão, um Akita branco de treze anos, entrou parinirvana (é um estado de nirvana profundo e final, alcançado após a morte do corpo físico, no caso de em vida a pessoa ter alcançado a iluminação). O nirvana final, a grande paz. Fizemos as mesmas cerimônias que fazemos para quando morre um ser humano. A prece antes da morte, logo após morrer, a prece antes do enterro e durante o enterro e a prece que continuamos a fazer de semana a semana. Acreditamos que até 49 dias após o falecimento completa-se o ciclo de uma vida-morte. Assim oramos e agradecemos a vida que compartilhou conosco e rogamos aos Budas e Bodisatvas que o encaminhe à claridade suprema da sabedoria infinita e compaixão ilimitada.
E como estamos em outubro, dia 4 comemorou-se São Francisco de Assis, frade católico italiano, que é reconhecido como protetor da natureza e de tudo que a ela pertence, e nesse dia se festeja o dia mundial dos animais. A associação deste santo católico aos animais aconteceu em virtude de histórias que falavam da sua capacidade de atraí-los. Certa vez, Francisco de Assis teria amansado um lobo; dizia-se que andorinhas o seguiam, formando uma cruz, um pássaro o avisou a hora da oração noturna, e a todos tratava como irmãos.
Estátua de São Francisco. Assis, Itália. Acervo pessoal.
Mas o real padroeiro dos cachorros para os católicos é São Roque. No século 14, o jovem órfão passou a dedicar sua vida aos pobres que sofriam com a peste e acabou contraindo a doença. Isolou-se no meio de uma floresta para morrer. Um cachorro apareceu; lambia suas feridas e trazia a ele, todos os dias, um pedaço de pão. Sua festividade é em 16 de agosto.

Figura de São Roque, com um cachorro ao lado. Créditos: Canção Nova.
E o famoso São Bernardo, que deu nome a uma raça de cães, foi um monge que vivia nos Alpes, na Suíça, no século XI, ajudando pessoas no hospício que fundou por lá, bem como aos peregrinos. No século XII, os monges passaram a utilizar tais cães para resgate de pessoas nessa região montanhosa, pois eram muito fortes e bons de faro, e deram à raça o nome do santo em questão. Também São João Bosco aparece na história como um santo protegido por um cachorro de nome Grigio, que o salvou de uma emboscada.
O Dalai Lama, líder espiritual do Tibete e chefe de Estado, levou aos Estados Unidos, em 1933, um cão da raça Lhasa Apso, oferecendo-o como um presente sagrado e desejo de boa sorte. E para o budismo tibetano, o Lhasa Apso é a representação da reencarnação de homens virtuosos, sacerdotes e lamas, antes de renascerem como humanos (olha o meu Gigante aí, pessoas: um cachorro de espírito elevado!!!). Para as culturas chinesa e japonesa, o cão é um animal auspicioso, que traz sorte.

14º Dalai Lama, sua mãe e um cão da raça Lhasa Apso. Índia, 1960. Créditos: Pinterest.
Para fechar com chave de ouro, só faltava eu encontrar algum santo cachorro… e não é que achei, gente? É o melhor exemplo de como nós, amantes dos cães, independente de crenças religiosas, temos nesses animais a representação de toda a pureza, lealdade e amizade, sentimentos que aquecem nosso coração. Apresento a vocês a história de São Guinefort:
Nenhum servo era mais dedicado que Guinefort ou, ao menos, nenhum devia ter o mesmo entusiasmo em receber seu senhor, um cavaleiro com um confortável castelo perto de Lyon, França. Até o dia em que seu senhor saiu para uma caçada, deixando seu filho bebê a seus cuidados. Ao voltar, deparou-se com o caos, o berço revirado, roupas espalhadas e o bebê sumido. Horror dos horrores, Guinefort tinha sangue em sua boca.
Em fúria, o cavaleiro o passou pela espada. Apenas para ouvir então o choro da criança, encontrada em meio à confusão, com uma víbora morta ao seu lado. O sangue era da cobra, não da criança e, petrificado, ouviu o último ganido de seu fiel servo, que havia dado cabo da ameaça, salvando sua progenitura (seu filho bebê).
Diante de um brutal remorso, o cavaleiro fez um santuário para Guinefort, deitando seu corpo a um poço, cobrindo com terra e plantando um bosque em volta. Esse santuário é real: seria visitado por fiéis, pedindo favores ao santo, até os anos 1930, quando finalmente a Igreja Católica fez fazer sua vontade para que fosse destruído. Para eles, era um sacrilégio venerar Guinefort.

Figura do cachorro São Guinefort. Créditos: Mitologia.pt
Guinefort foi reverenciado por décadas, mas por decisão do Vaticano, entendeu-se que um cachorro não poderia ser santo, e foi destruído o santuário, uma pena! Porém, não se esqueçam do meu Gigante, hein? Os cães têm alguma coisa espiritual que não entendemos, mas que certamente existe, não acham?
Para muitas pessoas, os cães são tão elevados de espírito como nós, ou até mais…Sou suspeita para falar, porque eu realmente acho que eles são quase anjos, de tão doces e amorosos. Quando criança, eu pedia ao papai do céu que os cães fossem para lá, porque eu queria ver os meus novamente. Apesar de crescer, ainda tenho essa esperança dentro de mim.
Que todos os santos, deuses, mestres, religiosos protejam nossos cães! E São Guinefort, é claro!
Até mais!
Bi
* Felipe Vander Velden, “A mulher Tapuya e seu cão – Notas sobre as relações entre indígenas e cachorros no Brasil holandês”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Online], Imagens, memórias e sons, postado no dia 08 outubro 2019, consultado em 29 setembro 2022.
** SOUZA, André Luis N. de. “É o Cão, uma análise sobre a construção da imagem de Exu como diabo cristão”. 2016. Consultado em 29 setembro 2022.