Todas as espécies e raças de animais domesticadas possuem em seus corpos, assim como nós humanos, estruturas responsáveis por captar e processar informações provenientes do seu entorno. Os sentidos. Visão, tato, paladar, olfato, audição, propriocepção, entre outros.

Um sentido muito especial – conhecido como nocicepção – sempre chamou muita atenção de todos nós, que o possuímos, apesar de refletirmos tão pouco acerca de seu funcionamento e controle. Você e eu já sentimos dor. Já quebrei ossos do meu dedo indicador, já me queimei mexendo com fogo e tomei tombos que me ralaram todo.

Quem nunca ficou com dor na coluna após ficar horas ou dias sentado em uma posição em que seu corpo não está habituado? Você já refletiu sobre como foi este processo dentro de você? Ou somente sentiu a dor e toda aquela emoção desagradável e seguiu a vida?

No texto de hoje, vamos começar um estudo acerca das sensações de dor experienciadas por nós humanos e pelos animais de outras espécies com os quais convivemos.

O termo nocicepção tem origem no latim. “Noci” provém de nocere, que significa lesar, ferir, fazer mal, e “cepção” vem de captus, cujo significado é captar, apanhar, tomar posse. Nocicepção é um sentido que a maioria dos animais possui, responsável por:
1. Captar impactos potencialmente nocivos, lesivos, provenientes do meio ambiente, ou que são gerados no interior do próprio corpo;
2. Modular uma resposta ao impacto, podendo gerar como consequência sensações dolorosas.

A Associação Internacional de Estudos sobre Dor (IASP) conceitua a dor como uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a dano tecidual real ou potencial. Por esta experiência estar associada a um dano/lesão, está integrada ao sistema nociceptivo.

Sempre que um cão cair nas escadas, saltar do sofá e cair de mal jeito, mudar de direção de uma forma muito brusca durante uma brincadeira de perseguição ou forçar as articulações correndo diariamente em pisos sem absorção de impacto, ele pode gerar uma pequena ou extensa lesão em tecidos musculares, ligamentos e outras estruturas que compõe o sistema locomotor.https://adrianoleonardi.com.br/artigos/lesoes-musculares/

https://isaem.net/lesoes-do-ligamento-colateral-medial-lcm/
Estas pequenas ou grandes lesões podem ocorrer sem que percebamos. Os cães e gatos geralmente são muito mais resistentes a dor do que os humanos. Mesmo que ocorra uma lesão extensa em estruturas do sistema osteomuscular, pele ou em órgãos internos – como no estômago ou intestinos -, ele pode resistir sem emitir sinais muito claros do seu desconforto, como vocalizar, mancar, parar de comer ou de brincar. Ele pode não demonstrar qualquer sinal de agressividade ou de intenso desconforto mesmo tendo a região lesionada apalpada com forte pressão, quando, após alguns dias ou semanas, é levado ao veterinário. Isto é muito comum na minha prática e na de colegas que fazem avaliação de dor usando o comportamento animal como um indicador de dor.
Portanto, os cães podem não sinalizar que estão com desconforto (ou não sabemos ler seus sinais sutis de desconforto). Entretanto, há situações em que os animais passam por eventos traumáticos como atropelamento por bicicletas, queda do colo de alguma pessoa da família, ingestão de objetos potencialmente lesivos entre outros. Eles podem manifestar-se com choros, latidos, mancando, perdendo o apetite, ficando mais amoados e mesmo assim, é possível optarmos por deixá-los sob observação na expectativa de que o animal tenha somente tomado um susto. Passam-se horas ou dias, o animal se “habitua” com o desconforto interno, segue a vida e a interpretação mais comum e fácil de fazer é que está tudo bem.

Apesar de eles não se alterarem de um modo que chame nossa atenção, ainda assim, o sistema nociceptivo em seu corpo pode estar ativo!

Mas, afinal, o que é e como ocorre a ativação deste sistema? Quais as consequências deste sistema ficar ativo por pouco ou muito tempo? Como ele se inativa?

Para começar, é fundamental saber que a nocicepção possui 4 etapas principais: Transdução, transmissão, modulação e percepção.

1- A transdução é a transformação dos estímulos químicos, mecânicos ou térmicos que entram em contato com o organismo animal e que possuem potencial para danificar suas estruturas – mesmo que em nível microscópico – em uma qualidade de informação capaz de ser transmitida para a medula espinhal e, possivelmente, para o cérebro. Sua função é informar o que está acontecendo no lugar que foi incomodado.
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Na transdução, o estímulo nocivo promove no local impactado a liberação de substâncias ativadoras do sistema nociceptivo, como acetilcolina, bradicinina, histamina, serotonina, leucotrienos, substância P, prostaglandinas, interleucinas, proteínas, cinases A e C, entre outros. Estas substâncias sensibilizam pequeninos receptores denominados nociceptores. Estas microscópicas estruturas são encontradas na pele, músculos, ligamentos, ossos, intestinos, estômago, articulações e em quase toda a extensão de nosso organismo.

Imagine uma situação na qual um indivíduo lhe rouba o celular no meio da rua. Você recebeu um impacto nocivo, lesivo. O que você faz? Vai prestar queixa na delegacia e informar a sua operadora. O indivíduo que faz a recepção da sua queixa e formula o B.O, seria o responsável por realizar a transdução. É o nociceptor. As emoções que lhe fazem sentir-se lesada (ou não) e as palavras que usa para narrar o ato, seriam as tais substâncias ativadoras do sistema nociceptivo – a histamina, serotonina, leucotrienos, etc. Você é a célula ferida.

Os nociceptores são receptores sensoriais ativados somente quando há estimulação de alta intensidade e é neles que se inicia a ativação do sistema nociceptivo. Isto pode levantar uma dúvida: Há receptores sensoriais ativados com estimulação de baixa intensidade? Sim. São os receptores que captam estímulos táteis, por exemplo. Se você senta na cadeira, logo sente uma sensação inócua nas regiões que encostaram nas superfícies. A pressão de contato do corpo com a cadeira é um estímulo de baixa intensidade que ativará somente os receptores táteis, também chamados de mecanorreceptores. Agora, se cairmos de costas na água após um salto de grande altura, sentiremos muita dor e ardência nesta área de contato. Isto se deve à ativação dos nociceptores pelo estímulo de alta intensidade.

Todo o processo químico, de liberação de substâncias na região lesionada, além de ativar os nociceptores, também promove no local da lesão/impacto um evento conhecido como inflamação. Ela, por meio da liberação de mais substâncias químicas no local afetado, tem como objetivo final proporcionar condições para a reparação dos tecidos. Um detalhe importante é que a química da inflamação soma-se aos elementos liberados no impacto e também estimulam e sensibilizam os nociceptores.

2- Transmissão: Processo de condução da informação captada e traduzida pelo nociceptor até a medula espinhal.
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3- Modulação: Quando o estímulo nervoso chega à medula espinhal, é avaliado por 3 famílias de neurônios diferentes.
3.1. Interneurônios: Onde ocorre a avaliação se a situação é grave e deve ser valorizada gerando resposta excitatória por parte destes neurônios ou se é uma situação tranquila, levando a uma resposta inibitória.
3.2. Neurônios proprioespinhais: São responsáveis pela atividade reflexa subconsciente de retirada das partes do corpo do contato com o estímulo nocivo.
3.3. Neurônios de projeção ascendente: Se a situação possui gravidade, estes neurônios levarão os impulsos da região medular para o tálamo/cérebro, que passará a gerenciar a situação.

4- Percepção: Quando a situação é grave e passa para os neurônios de projeção, entramos nesta etapa. Aqui passamos a ter consciência da dor. Temos percepção da dor.

A ativação do sistema nociceptivo por um estímulo nocivo envolve pelo menos os 3 primeiros mecanismos, podendo ou não culminar no quarto, que consiste na percepção da dor. Estas etapas e mecanismos geram o que chamamos de dor aguda. A dor aguda tem seu término quando há reparação do tecido lesado. Neste caso, os nociceptores param de ser estimulados pelos elementos químicos da inflamação no local da lesão e, com isso, a homeostase é restaurada, sendo o sistema nociceptivo local “desativado”.

Quando uma lesão não é corretamente tratada, os nociceptores locais acabam sendo estimulados de modo contínuo ou intermitente pelos elementos químicos da inflamação e pelos choques constantes presentes na rotina de atividades do cão. Esta estimulação prolongada do sistema nociceptivo gera alterações no sistema nervoso periférico e central, desencadeando uma condição conhecida como dor crônica. As 4 etapas que foram citadas anteriormente sofrem alterações nos seus mecanismos e funcionalidade. De maneira bem resumida, a dor crônica é um estado de hiperexcitação e sensibilização das estruturas e mecanismos envolvidos nas 4 etapas citadas. A modulação inibitória da dor fica em desequilíbrio com os mecanismos excitatórios. Depois que estas alterações funcionais ocorrem, mesmo que a lesão seja tratada adequadamente ou se regenere espontaneamente e ocorra a desinflamação local, a hiperexcitação do sistema persiste.

A dor crônica é uma disfunção à parte que se destaca do distúrbio inicial e, até o momento o que temos de conhecimento acumulado acerca dessa condição, requer tratamento pelo resto da vida. Se havia uma dor aguda suave devido a uma lesão leve de tendão, passadas algumas poucas semanas ou meses do animal correndo e pulando sem tratamento adequado, a dor aguda passa por uma cronificação e as consequências deste processo se estabelecem na vida do animal. Essa alterar passa a interferir na sua percepção e sensibilidade, na realização de tarefas cotidianas, interação social e qualidade de vida. Um grande esforço deve ser empregado para a prevenção e controle adequado da dor aguda, evitando-se a progressão para dor crônica.

Um ponto importante a ser compreendido é que ainda não há na grade curricular dos cursos de medicina veterinária do Brasil matérias que capacitem-nos a diagnosticar e tratar adequadamente casos de dor crônica. Parte do diagnóstico de dor crônica passa pela compreensão do comportamento natural dos pacientes, o que também não é ofertado nas graduações. A dor crônica, na realidade brasileira, é subdiagnosticada pois requer uma capacitação extra-curricular. O reconhecimento da dor é a base para a sua quantificação e, consequentemente, para o manejo adequado do paciente. Cães com dor crônica desenvolvem alterações comportamentais gradualmente e de maneira sutil. As atividades sociais envolvendo pessoas e outros animais domesticados, atividades de descanso, observação, relaxamento, higiene, ingestão hídrica e alimentar, mobilidade geral, atividades lúdicas, exploração e temperamento normalmente sofrem alterações devido a um estado crônico de adoecimento e dor.

A maior parte das estruturas do organismo animal possuem capacidade de se auto regenerar. Para que este processo ocorra da forma mais rápida possível ou, até mesmo, para que ocorra evitando a cronificação da dor, são necessárias condições favoráveis e, em muitos casos, de acompanhamento e tratamento de médico veterinário. Por exemplo, quando há uma lesão no sistema locomotor, o qual rotineiramente é requisitado pelo animal em brincadeiras, passeios, corridas e na movimentação mais suave que realiza ao se levantar, deitar e caminhar pela casa, o que ele mais precisa para uma reparação plena é repouso e redução do nível de atividade. Um animal com lesão leve ou moderada necessita, no mínimo, de uma redução nos seus níveis de atividade. Reduzir o número de caminhadas, de brincadeiras, ter um piso não escorregadio para caminhar diariamente, parar de ficar saltando do sofá ou da cama para o chão. Enfim, é necessário favorecer este processo, pois, se ao lesionar uma destas estruturas e continuar gerando o mesmo nível de pressão, dificilmente ela irá se regenerar. Nestas condições, estamos predispondo o animal ao desenvolvimento de dor crônica e à degeneração da estrutura já lesionada.
A melhor forma de evitar com que o corpinho dos nossos cães sofra lesões e fique exposto a consequências da cronificação da dor, é atuar de forma preventiva – tema que será abordado em um próximo texto. E se ele passar por um impacto muito intenso no sistema locomotor devido a alguma queda ou mal jeito, estiver com uma inflamação nas gengiva ou qualquer outra possível alteração de saúde, não resista a buscar auxílio de um médico veterinário que tenha condições de avaliar alterações na estrutura afetada do seu (sua) companheiro (a)!
Até o próximo post!
Alberto

Referências das imagens
Imagem 1 – https://adrianoleonardi.com.br/artigos/lesoes-musculares/
Imagem 2 – https://isaem.net/lesoes-do-ligamento-colateral-medial-lcm/
Imagem 3 – http://vetclinjacutinga.com.br/2018/05/16/envenenamento-de-caes-e-gatos-saiba-como-proceder/
Imagem 4 – https://gestoranimal.com.br/como-refrescar-seu-cachorro-em-dias-quentes/
Imagem 5 – https://fisiocarepet.com.br/wp-content/uploads/2021/11/Protocolos-fisia%CC%81tricos-e-medicamentos-no-controle-da-dor-2.pdf